01 novembro 2007

Amou demais



Cefas Carvalho

Amou demais. Sabia disso. Portanto, precisava se punir pelo excesso. Todo excesso merecia punição, assim ele pensava, desde sempre, comedido que sempre fora. Parcimonioso, desde criança, sempre fora metódico, sistemático, exato, pouco afeto a arroubos e exageros. Pontuava sua vida – emocional, familiar, profissional – pela ponderação. Tudo isso até Alice entrar na sua vida. Caiu sobre sua cabeça como uma bigorna de desenho animado. Amou Alice como jamais havia amado alguém ou algo. Com loucura, com paixão. Mudou da água para o vinho, então. Sorriu mais. Deixou-se levar pelo sabor da vida. Mudou o corte de cabelo. As roupas. Passou a freqüentar lugares diferentes. Leu novos livros. Ouviu novas músicas. Tudo com e por Alice. Um dia, Alice se foi. Sem explicação. Sem palavras. Tudo que é bom, dura pouco, disseram. Ele bem o sabia. Pensou em voltar a ser o que era. Desistiu. Não queria mais mudar. Não queria mais voltar a ser o que era. Não lembrava de como era antes de Alice. Também não queria sofrer. Sabia que viver é sofrer, mas decidiu pôr fim ao sofrimento. Também precisava se punir. Não achava que merecia mais a vida. Não sem Alice. Não queria mais viver. Pensou em repousar a cabeça no forno, após vedar as janelas. Imaginou uma bala no ouvido direito. Lâminas nos pulsos. Seu corpo nos trilhos, esperando o trem. Passou dias pensando em como proceder. Com serenidade. Com segurança. Decidiu pelo gás, suave, invisível. Vedou com massa de modelar e fita adesiva as janelas. Apagou as luzes da casa. Deixou a porta a aberta. Escreveu um bilhete para a mãe e o deixou na mesa da sala. Abriu a tampa do forno e deitou-se a cabeça sobre a grade de ferro. Com o braço, virou o botão do forno. Sentiu o cheiro doce do gás. Começou a ter sono. Pensou em Alice. Nos seus olhos castanhos imensos. Pensou nas viagens que não fizeram. Nos filhos que não tiveram. Pensou na sua vida, que chegava lentamente ao fim. Precisava esquecer Alice. Precisava de punir. Sentia um sono estranho chegar. Tinha amado demais. Mas, o amor iria acabar. Tudo iria acabar. A escuridão. O sono.

06 setembro 2007

O amor que não rima com dor



Cefas Carvalho


Cuidei que não sofresse, não chorasse mais, que ficasse imóvel em porcelana, em granito, como santa no altar, com seu meio sorriso de Maria, de Mona Lisa, de quem vai passar a eternidade sorrindo, posto que não – não, repito! – a farei mais chorar, ainda que todos os demônios do Hades me tentem, me espezinhem, me coloquem rivais, perfídias, intrigas, armadilhas, percalços, enfim, no caminho não afastado do nosso amor, caminho este que é construído a cada passo, com mapas sagrados de carinho e paixão, e, portanto, quando o Mal bater à porta de minha língua e de meu coração, eu possa, como Jasão, como Ulisses, resistir estoicamente e perseverar no meu/nosso amor, de forma que nem as artimanhas deste mundo nem as dos mundos infernais possam estilhaçar o vaso – frágil ainda, como tudo que é belo e recém-construído – do amor que firmamos, e, se luto para não te fazer mais chorar, também eu não mais chorarei, posto que apenas sua dor me arranca lágrimas, e que as deixemos exclusivamente para os momentos de alegria e gozo, quando, nos portões da noite, fazemos de nosso corpo um só, e mesclamos nossas peles até gerar uma nova cor, pigmentação rara produzida pelos (des)caminhos do desejo, e se pedes que eu repita, repetirei, sim, em todas as línguas, as dos homens e as dos anjos, que não, não mais a farei chorar, ainda que para isso tenha que lançar fora minha língua com um alicate ou cortar meus pulsos e me esvair em sangue no chão do banheiro, tudo para que, de maneira nenhuma conhecida pelo ser humano, eu faça seus olhos de bolas de gude, de espanto, de beleza, derramarem uma só lágrima, afinal, que o amor rime com dor somente nas poesias que lemos e relemos nas noites regadas a vinho e nas músicas que ouvimos como quem ouve a voz de querubins, e que em nossas vidas o amor procure outras rimas, ou, que as esqueça e que se preocupe apenas em explodir em nossas vidas como fogos de artifício na noite escurecida, e que a dor e seus cavaleiros do apocalipse – solidão, ódio, rancor e mágoa – passeie com sua foice maldita em outras plagas e deixe nosso amor intocado, inviolável, conservado em fluidos de carinho e paixão, e que se afaste trotando para um outro mundo que não nosso, que não queremos (mais conhecer) e, que, violentando poesia, ortografia, gramática e lógica, nosso amor rime com o que quiser – desejo, intimidade, seu nome, meu nome, o nome que escolhemos para nossa filha que nasceu em nossos sonhos e em nossos lábios, e que desta rima nasça, então, uma poesia nova, algo novo que celebre tanto, tanto sentimento...

31 agosto 2007

Lampião na escola, sim senhor!



Cefas Carvalho

Pessimista incurável, daqueles de achar que o mundo cami-nha a passos largos para algo entre o "1984" de Orwell e o filme "Blade Runner", venho tendo gratas surpresas ao observar o comportamento pedagógico de escolas particulares de Natal e Parnamirim. Tendo um filho de 12 anos no 6º ano, obviamente o tema pedagogia me interessa. Meu otimismo vem pelo fato de testemunhar as escolas saindo da burocracia que sempre marcou o sistema educacional rumo a algo mais dinâmico e antenado com a realidade. Explico. Nos últimos dois anos, em escolas diferentes, meu filho vem sendo estimulado a ter contato com a cultura regional, através da leitura e mesmo da criação de folhetos de cordéis, por exemplo. A compreensão de fenômenos regionais também vem sendo estimulada. No ano passado, meu filho interpretou Padre Cícero em uma peça escolar que analisava se o cangaceiro Lampião era bandido ou herói. Neste ano, os colégios convidaram violeiros e cordelistas para declamar nas salas de aula, em celebração ao Dia do Folclore. Tudo muito diferente de meus tempos de criança, estudante que era do Colégio Maria Auxiliadora, tempos em que tínhamos que ir para a avenida Salgado Filho de bandeirinha do Brasil na mão para saudar o carro do presidente Figueiredo (aquele que preferia o cheiro de cavalo ao cheiro do povo) que passou a cem por hora. Eram tempos de louvar figuras distantes, quase míticas, como o Duque de Caxias e o marechal Deodoro, herópis da pátria que gloroficávamos nos trabalhos escolares. Anos depois é que descobri que o primeiro jogava cadávares em rios para contaminar a população civil do inimigo e que o segundo não passou de um fantoche entre os militares que destronaram Dom Padro II. Mas, aqueles não eram tempos de contestação. recordo que penei muito questionando aspectos do catolicismo com as professoras de “Religião”. Falar de Lampião, Corisco, Jesuíno Brilhante? Nem pensar. Tudo já vinha moído, cada verdade mais absoluta que outra. Recordo que aprendíamos sobre o Rio Grande do Norte aspectos gerais sobre geografia, clima e vegetação. No máximo uma informação sobre Jerônimo de Albuquerque. Mas, falar de índios, presença estrangeira na 2ª Guerra, oligarquias que se sucediam no poder? Nem pensar. Hoje, com todos os defeitos que ainda existem no sistema eduicacional e na tão falada perda de autoridade de pais e professores em relação aos filhos/alunos, vejo que a abertura de um canal de diálogo (mais que isso, um canal de questionamento da realidade) é não apenas saudável, mas fundamental para a construção do cidadão do futuro. Para a construção do país que sonhamos ver e que, a cada dia que passa, percebemos que não vai acontecer em um passe de mágica. Que a nova geração, questionadora, crítica, desconfiada, sem verdades dogmáticas crie enfim no Brasil o “país do futuro”.

27 agosto 2007

De trevas e cegueira



Cefas Carvalho

Ó treva indescritível que me envolve, núvem que não consigo dissipar! Esta frase faz parte de uma das mais belas falas do teatro e da própria literatura ocidental, o texto final de Édipo, rei de Tebas, quando, revelado que ele, cumprindo a trágica profecia sobre seu destino, matara o pai e desposara a mãe, e, por esta razão, ele fura os próprios olhos, se condenando a cegueira. A imagem de auto-flagelação e a falta de visão da peça sempre me impressionaram. Na verdade, míope que sou desde os treze anos - dependendo de óculos e lentes de contato para enxergar uma placa de loja - acabei desenvolvendo certo fascínio pela cegueira. Todo míope quando sem os óculos se sente meio cego, envolto em sombras e luzes difusas, silhuetas que nem sempre conseguem ser decifradas. Encantado por Édipo, também me encantei com Homero, o poeta cego que por enxergar mais que seus conterrâneos produziu "A Ilíada" e "A Odisséia", dois monumentos da poesia. Outro poeta cego foi o inglês John Milton, que escreveu o célebre “Paradise Lost - Paraíso perdido”, poema épico que tenho no original há uma década mas nunca me aventurei a ler. A literatura mundial tem outro mito envolvido com a falta de visão: o argentino Jorge Luís Borges, este, um de meus heróis, que ficou cego justamente quando assumiu a direção da Biblioteca Nacional. Borges, inclusive, foi homenageado pelo italiano Umberto Eco em “O nome da rosa”, na forma de um bibliotecário cego chamado Jorge de Burgos. Outro argentino, Ernesto Sábato, escreveu o sensacional "Sobre heróis e tumbas", na qual cria uma seita secreta dos cegos que suposta e secretamente domina o mundo. Trata-se de um dos melhores livros que já li e que consolidou meu fascinio pelo tema. mais recentemente, me deparei com o igualmentebom “Ensaio sobre a cegueira”, do português José Saramago, que está virando filme dirigido pelo brasileiro Fernando Meirelles com Julianne Moore e Gael Garcia Bernal. Há muito mais referências à cegueira e falta de visão (real e metafórica) na literatura, tantas que impossível seria registra-las neste espaço. Talvez porque toda atividade de leitura apaixonada seja cercada pelo medo de não conseguirmos mais fazê-la, mediante a cegueira. Antes da invenção da luz elétrica, a leitura notuirna a luz de velas contribuiu para prejudicar a visão de muitos literatos ao longo dos séculos. Não é a toa que os clichês da leitura excessiva passam sempre pelo sujeito de óculos, geralmente “fundo de garrafa”. Ler cansa os olhos, sim. O problema é que não ler, cansa a alma. Talvez a verdadeira treva seja não a de Homero, Borges e Milton, que, sem enxergar, a tudo viam, mas sim o desconhecimento, a ignorãncia, a intolerância. Uma treva que faz com que o sujeito enxergue, mas sem ver. Esta escuridão, como citou Joseph Conrad (que aliás, como ex-marinheiro, tinha ótima visão) em seu “Coração das trevas”, pode significar “o horror, o horror...”

14 agosto 2007

Teu sono



Cefas Carvalho

Observo-te em teu sono, fato raro, posto que durmo pesadamente, quase não acordo durante a noite e também porque, devido a algum sortilégio do destino, quase sempre dormimos e acordamos na mesma hora, como irmãos siameses, como bonecos que uma criança força a dormir em sua brincadeira. Observo-te e imagino então em que mundo estás, em sua sagrada inocência... sei que todos os que dormem parecem inocentes, mas tu, és mais inocente do que os outros, do que eu, porque dormes falando de amor e portanto, por alguma imposição sagrada dos deuses do sono, deves também sonhar com o amor. Observo teu rosto, sereno, onde a boca entreaberta deixa escapar algo que por vezes me parecem suspiros, por vezes me parecem palavras, talvez mantras, talvez outras línguas, sânscrito, hebraico, grego antigo... talvez sussurre coisas para mim, coisas que meus ouvidos de insone não conseguem detectar (talvez eu as ouvisse se estivesse dormindo... quem sabe no sono os amantes consigam se comunicar...) Observo então seus olhos cerrados, as pálpebras que escondem as íris tremendo quase imperceptivelmente... observo teu corpo, branco quase leitoso, puro ainda que semi-despido, posto que a calcinha branca e a blusa que revela um seio não escondem de mim teu corpo... no sono, mesmo o que gera desejo também gera pureza e a excitação em potencial transforma-se em carinho, um carinho que se contém, já que um toque poderia te acordar e esta seria uma heresia que jamais pretenderia cometer. Observo mais atentamente teu braço fazendo um suporte para o rosto em cima do travesseiro, e também uma perna dobrada em V, formando um ângulo que sugere ao mesmo tempo sensualidade e tranqüilidade. Observando teu corpo em teu sono recordo das batalhas de carne horas antes, violentando a calma da madrugada com gritos, gemidos, espasmos... e penso em teu sono pesado como o despojo colhido pelo guerreiro após a cruzada vencida. Mas, nem só de belicismos vivem meus devaneios sobre teu sono... vejo o copo d´água semi-vazio sobre a mesa ao lado da cama e recordo que disseste, antes de dormir, que aquela água lhe parecia mais saborosa naquele momento do que um vinho. Também vejo na mesa, como se velando teu sono, os livros que te emprestei – cinco, salvo engano, um Saramago, duas peças de Shakespeare, um livro de humor – e que não terminaste de ler (lês todos os livros de uma vez, com paixão, com impulso...) Eis que de repente se moves, vira o rosto para o outro lado, fecha a perna fazendo uma linha com a outra perna, resmunga ou suspira algo ininteligível... talvez esteja sonhando... com quê? Tolice tentar adentrar o campo dos sonhos alheios... melhor imaginar que ela está sonhando com os anjos (embora eu espere que ela esteja sonhando comigo, não com anjos púberes poetando asas e harpas). Por fim, percebo minhas pálpebras começando a pesar e percebo que minha vigília pelo sono dela chegará ao fim, pois que Morfeu me convida lentamente para adentrar no mundo dele. Observo-te então pela derradeira vez na noite (ou pela derradeira vez na vida, já que como diz a máxima popular ao futuro a deus pertence e o armagedom poderá chegar nesta noite ainda...) como quem se despede, agradecendo a um deus desconhecido, a um deus em que não acredito pela dádiva de partilhar com você o momento do teu sono. Durma em paz, amor!

07 agosto 2007

Os imperativos do desejo



Cefas Carvalho

Ele não tinha a menor idéia porque ela o atraíra tanto. Deveria ter uns trinta e poucos anos, talvez dez anos a mais que seus vinte e cinco. Além disso diferia bastante do seu ideal de mulher. Ela era baixinha, bem feita de formas, mas todas parcialmente escondidas pelo vestido preto algo florido, como de uma carola (católica ou evangélica?)...

Não obstante, possuía olhos imensos que insistam em fitá-lo (ele não resistia a mulheres que sustentavam o olhar, como em desafio) e uma espécie de charme que o vestido e as maneiras recatadas não conseguiam – talvez não pudessem – esconder.

Ela, por sua vez, se benzia na imaginação por estar correspondendo aos olhares sem vergonha daquele rapaz que tinha idade para ser... não são filho, evidentemente, mas um sobrinho. Não teria ele percebido que ela era uma mulher séria, e mais, que isso, casada! Não teria ele visto a aliança em seu dedo, brilhando tal um sinal de proibição, de impedimento?! E ainda assim a olhava fixamente. Não, os jovens de hoje realmente não prestavam, pensava. Mas, em vez de olhar para a esquerda, de onde viria o ônibus que a levaria para casa, insistia em olhar para a direita, lado oposto onde ele se encontrava.

E ele sorria. Para ele, um sorriso inocente, resultado de sua percepção que estava estranhamente atraído por aquela mulher. Para ela, um sorriso debochado, quase obsceno, de quem conscientemente quer perverter alguém.

Subitamente ela percebeu que ele se aproximava dela... Tremeu, como esconder isso? Que diabos ele viria falar com ela? E se ele falasse algo grosseiro? Teria como se defender, naquela parada de ônibus algo escura no sempre esquisito centro de Natal? Haveria algum policial por perto. “Com licença, a senhora sabe se o ônibus 44 pára aqui?”, perguntou. Ela levou um susto, mas o olhou com um sorriso falsamente sereno e respondeu. “Sim, o 44 pára aqui”. “Obrigado, senhora”, respondeu, com insuspeita educação. “Não me chame de senhora”, falou ela, “não sou assim tão mais velha que você”, completou. “Desculpe, falei por educação”, retrucou o rapaz. “Meu Deus, que idiota eu sou”, pensou ela, “acabei dando chance para que ele continue a conversa”. “De perto ela é mais interessante que naquela distância”, pensou ele. Ela, então, olhou para ele, fingindo avistar um carro que passara em alta velocidade. Ela bonito, sim. Alto, magro, com olhos negros melancólicos e uma barba mal feita típica da idade e de quem não segue rigorosamente os ditames da vida social e profissional. Que faria ele? Com quem moraria? Teria namorada? “Ai, meu Senhor, por que estou pensando tudo isso, que me importa o que ele faz ou quem ele é?”, pensou, apertando uma mão na outra. Para não fazê-lo, ajeitou a saia, como se ela estivesse fora de lugar, apertando-a ainda mais em seu corpo. “Meu Deus, essa mulher é muito gostosa”, pensou o rapaz. Mais adiante, na mesma parada, havia uma adolescente loira oxigenada, possivelmente escapando do colégio, mas ele percebeu que só tinha olhos para a mulher a poucos centímetros do seu corpo. Também percebeu que estava se excitando. “E se eu a abordar?”, pensou. “E se eu perguntar o nome dela e o que faz no centro?”, raciocinou, algo inseguro.

Chegou um ônibus, o 40 e ele percebeu alterações no movimento do seu corpo. Contudo, quando o veículo parou, ela continuou imóvel. Se quisesse agir, ainda teria chance. Talvez ela pegasse o mesmo 44 que ele. Possivelmente, não. Urgia, então, fazer alguma coisa, afinal, estava realmente excitado, e não só fisicamente. Ela, por sua vez, evitava olhar para trás, onde ele estava, mas parecia sentir o hálito quente em sua nuca e também percebeu que estava excitada. Como há muito não sentia, com seu marido ou com qualquer outro homem. A situação a excitava, a possibilidade dele a abordar diretamente a qualquer instante ou de fazer algum movimento brusco ou em falso. Não pensava mais na idéia de pecado ou que estava agindo errado. A excitação, o ouvir seu coração pulsando, o sentir os seios inflando sob a blusa negra, como se quisessem arrebentar os botões, confinaram a culpa em um escuro departamento de sua alma. Naquele momento, em que a respiração do rapaz lhe parecia quase palpável, sentiu que se ele pedisse o número do seu celular, ela o daria. Se ela a convidasse para um encontro no dia seguinte, ela concordaria. Instintivamente, deu um leve passo para trás. Ele o percebeu e deu um passo consciente para frente. Agora a respiração dele não era mais imaginária e sim real. Sentiu o cheiro de suor dele e fechou os olhos, como se para senti-lo ainda mais forte. Ele, por sua vez, sabia que devia falar novamente com ela (não falara na primeira vez com a desculpa esfarrapada do 44?) mas não ganhou coragem. Pensou em convidá-la para beber uma cerveja, um lugar discreto é claro, percebera a aliança em seu dedo. Haviam hotéis discretos no centro, onde casais entravam e saíam sem despertar suspeitas. Estava tão excitado que puxou a camisa para baixo a título de disfarce. Ela olhou para ele, como se implorando. Ele a olhou fixamente e esboçou algo para dizer. As palavras não saíam. Ela olhou de novo para a esquerda a fim de respirar, e viu o ônibus 38 chegando. Sabia que não devia fazê-lo, mas, instintivamente estirou a mão. O motorista parou e ela, sem olhar para ele, entrou no ônibus, que partiu rapidamente. Ele ainda olhou ao longe para tentar ver seu rosto em alguma janela. Inútil. Ele então percebeu o 44 que se aproximava. Suspirou a título de auto-desabafo enquanto estendia o braço para que o motorista visse seu pedido de parada. Enquanto isso, ela derramava uma lágrima discreta e perdida entre as curvas no ônibus 38 e sabia que precisaria de muitos banhos de água fria naquela noite longa e provavelmente triste.

01 agosto 2007

Não quero mais



Cefas Carvalho


Estourei minh´alma nos corais

Queria o mar, não quero mais...



Beijos de sal em alto mar

Queria velas pra navegar



Paixões pagãs no areal

Queria o bem, queria o mal



Beber o mar em aguardente

Queria mais, tão de repente



Estourei minha vida lá no cais

Queria viver, não quero mais...

24 julho 2007

Queríamos só zoar com as putas



Cefas Carvalho

Para quem como eu morou alguns anos na zona Sul do Rio de Janeiro e em Natal estudou no Colégio Maria Auxiliadora convivendo com amigos que estudavam no Marista, Salesiano e outros colégios religiosos-elitistas não é dificil entender o processo operacional e emocional dos quatro playboys que espancaram uma doméstica na capital carioca há três semanas, em fato que chocou o país. Muitos preferem partir para análises mais profundas, como se o fato fosse gerado pela crise moral do país ou pelo caos na comunicação entre pais e filhos, mas minha análise é mais para filosofia de botequim: filhinhos de papai, em geral, tem uma visão deformada da vida em sociedade e das diferenças. para eles, eles próprios são uma casta superior e qualquer coisa que não faça parte de seu universo sócio-econômico e de seu mundinho perfeito-imaginário (negros, gays, índios, putas, mendigos) é algo inferior, que merece - e pode - ser mutilado, exterminado. Ou “zoado”, para usar um termo utilizado por um dos playboys detidos no Rio, Rubens Pereira Arruda Bruno, 19 anos, universitário, morador da barra da Tijuca. Em seu depoimento á polícia ele disse que espancaram a doméstica por engano, pois queriam “apenas zoar as putas”. Ou seja, queriam apenas se divertir. Presume-se, portanto, que as putas de baixa e média categoria, as que ficam nas ruas, são seres humanos de segunda classe, que podem (devem?) sofrer chutes e socos em prol da “diversão” de filhinhos de papai endinheirados, ociosos e bêbados. O raciocínio do infeliz Rubens Bruno é similar ao usado por um dos assassinos do índio Galdino, há alguns anos. “pensamos que fosse um mendigo”. Ou seja, mendigo está lá nas ruas para isso mesmo, para ser queimado vivo, ou chutado, espancado, retalhado. Mendigo não é gente, pensam estes filhinhos de papai. Mas, a questão é que o que acontece em Brasilia e no Rio poderia muito bem acontecer em Natal. O raciocínio dos playboys nataleneses é similar ao dos rapazes do Sul Maravilha. Quem tem dúvida, que frequente barzinhos, festas e forrós onde estes indivíduos frequentam e observe como eles tratam garçons, flanelinhas, engraxates, qualquer outro ser humano que não faça parte da sua “tchurma”, que não compre roupas na Colcci, Stalker e Adji, não tenha um carro do ano dado por painho quando passou na faculdade para a Universidade paga, é um ser humano inferior. Talvez nem chegue a ser gente. Já presenciei na mesa ao lado filhos de políticos “zoarem” um garçom em um bar da moda por uma bobagem. Teve até o tradicional “você sabe com quem está falando?”. Apesar da divulgação maciça do caso dos playboys cariocas, nada indica que este tipo de gente mudará. Domésticas, putas, negros e gays que fiquem em alerta: pode ter um playboy querendo “zoar” com você!

16 julho 2007

Escolhas...



Cefas Carvalho

Tudo na vida são escolhas. Lembrou da frase que ela disse. Sempre recordava aquela frase. Naquela manhã, mais do que nunca, quando viu o ônibus azul destroçado, aberto em ferragens, pessoas estiradas no asfalto (vivas ou mortas?) e ambulância do Samu à espera dos infelizes. Assistiu à cena - que parou o tráfego e o atrasou em seus compromissos – da janela de outro ônibus azul, com itinerário um pouco diferente do primeiro. Deixara de ir no ônibus que colidira – e suportara esperar mais dez minutos – para andar um pouco menos, ao fim da viagem. Se tivesse escolhido viajar no primeiro ônibus, que passou dez minutos antes do ônibus que pegou, poderia estar agonizando no asfalto. Fizera, sem saber, claro, a escolha certa. Tudo na vida são escolhas, dizia ela. Recordou quando, anos antes, uma turma da faculdade organizava uma viagem à Pipa. Tinha também um convite para uma festa, onde estaria uma mulher que o interessava á época. Quase optou pela farra com os amigos, mas por fim se decidiu a ficar em Natal e tentar a nova conquista amorosa. Amargou vê-la com outro na festa. Mas, no dia seguinte de ressaca, soube que o veículo dos amigo rumo a Pipa se envolvera em um acidente na estrada. Um entrou um coma, dois quebraram partes do corpo. Poderia ter sido ele. Fizera a escolha certa. Anos mais tarde, entrou em um videolocadora para devolver um filme. Hesitou entre entregar a fita à atendente loira da esquerda ou à morena, mais à diretira. Optou pela segunda. Conversaram sobre filmes, dias depois trocaram telefones e um ano depois se casaram. Fizera a escolha certa. Depois ouviu dela a teoria sobre escolhas. Sabia que cada vez que acordava teria uma série de escolhas para fazer. Uma delas poderia mudar sua vida. Ao escolher entre um elevador ou outro, sabia que poderia estar optando entre a vida e a morte. Desta forma, vivia em permanente estado de livre arbítrio, governado pelo acaso -muitas escolhas e seus resultados são ditadas pelo acaso - e pela sua intuição. No dia seguinte ao acidente com o ônibus azul que quase o vitimara, teve o pressntimento que não deveria ir trabalhar. Um arrepio lhe percorreu à espinha. Decidiu simular uma enxaqueca e ficar em casa. Assistiu à esposa ir para o trabalho e se concentrou em sua caseira ociosidade. Considerava-se uma espécie de sensitivo. Ligou a TV. Acidentes, tiroteios, mortes... nada disso podia lhe afetar. Entrou no banheiro para escovar os dentes após tomar café. De repente, escorregou na poça da água no chão no banheiro e bateu a cabeça no mármore da pia. Deitado no chão sangrando na testa, lembrou de sua mulher dizendo: “Molhei o chão todo, não sei se enxugo agora ou se corro para o trabalho”. Ouviu-se dizendo: “Deixe que eu enxugo, querida”. Não enxugara. Não deixara ela enxugar. Fizera a escolha errada. Pensou nisso até sentir sua vida indo embora, esvaindo-se lentamente de seu corpo...

12 julho 2007

Estilhaços



Cefas Carvalho

Rasguei o passado, rompi os tratados
Icei âncora e naveguei em outros mares nunca
Antes navegados

Rasguei os diários, os relatos
Destruí os sonetos
Lancei por terra papéis, porta-retratos
Projetos, sonhos mal feitos

Atirei pela janela as contas
As malas já prontas
Os manuais de instrução
Quebrei o interfone, o portão
As boas intenções
Queimei o livro dos sermões, os cordéis
Estilhacei cartas, papéis
Destruí minhas alianças, meus anéis

Investi contra moinhos, mapeei
Novos caminhos
Da lei, fiz só rascunhos
Destruí com os meus punhos
Meus totens tão mesquinhos

Amassei os versos, parti espelhos
Engoli os verbos, fiquei de joelhos
Abri mapas, fechei portas
Escrevi torto por linhas tortas

Por você…