14 março 2008

Não, não e não!



Cefas Carvalho

Tarde dessas, na Livraria Siciliano, depois de tomar um café expresso, folheei, por alguma mórbida curiosidade, um destes livros de auto-ajuda, que me provocam verdadeiro asco e que fazem a fortuna de gente como Leo Buscaglia, Shiniashiki e picaretas do gênero. Já havia dado uma olhada rápida naqueles livros que versam sobre como encontrar o amor e naqueles com analogias sobre águias e passarinhos, mas naquela tarde descobri um livro onde o autor – cujo nome felizmente não lembro – tinha fascinação pela palavra “sim”. Com base em supostas teorias psicanalíticas e sociológicas (pobres Freud e FHC) o autor defende que devemos ser “afirmativos e positivos” e que devemos dizer mais “sim”, para nós mesmos, para nossos amigos, para os filhos... Pois instantaneamente reagi ao “psicólogo-sociólogo” e inventei minha própria filosofia do “não”. Pois, em tom de auto-bravata e, confesso, deboche, decidi me aferrar ainda mais ao “não”. Não acho que o Brasil seja o país do futuro, não tenho orgulho em ser brasileiro, não choro ao ouvir o hino nacional, não torço pela seleção canarinho na Copa do Mundo, não, não e não. Não acredito mais na Esquerda brasileira, não confio na polícia do nosso país (principalmente depois de assistir a “Tropa de Elite”). Não vou conversar miolo de pote na fila do banco, nem vou dar umas moedas para o mendigo profissional que dá expediente na pracinha. Não vou dizer que respeito todas as religiões, posto que respeito as pessoas, mas não os credos, e não vou acreditar que deus está em todas as coisas, pois ainda que ele exista duvido que esteja nas baratas, nos pedófilos e nos serial killers. Não vou achar que tudo vai dar certo num passe de mágica ou por obra divina, já que acredito no postulado de Geraldo Vandré que quem sabe faz a hora não espera acontecer. Não, não vou acreditar que devo sorrir para todos porque isso vai me fazer bem. Não vou deixar de tomar café em quantidades industriais porque a última pesquisa na Suécia decidiu que cafeína faz mal. Não deixarei de comer pizza, massas e de beber minha sagrada cerveja gelada. Não vou fazer tudo que meus filhos pedem, para que não cresçam mimados e alienados, achando que o mundo é deles, correndo o risco de queimarem índios pensando se tratar de mendigos. Não vou deixar de ler à noite de me madrugada para poupar minha vista, assim como não vou deixar de ouvir música em alto volume para preservar meus tímpanos. Também não vou deixar de me entregar ao amor com medo de sofrer e não vou poupar esforços para este amor cresça tal qual o musgo na pedra, cantado por Violeta Parra em “Volver a los 17”. Em suma, minha vida é cercada de “nãos” em vez de “sims” e é com estes “nãos” que vou a tocando até o dia malfadado em que em vá desta para melhor ou que, como é mais provável que aconteça, eu volte a ser pó, posto que do pó devo ter vindo.

10 março 2008

Quase o paraíso



Cefas Carvalho


“Sabia que sua imediata obrigação era o sonho”
Jorge Luis Borges em “As ruínas circulares”





Aportou na praia cansado, ofegante, após longa e difícil navegação. Saboreou os pés descalços na areia molhada e olhou em volta. Como sabia, como sempre soube, a ilha estava absolutamente deserta. Afastou a jangada da praia e observou-a perder-se no oceano, não mais precisava dela, sua viagem era só de ida. Contemplou a praia, a ilha, a vegetação, as árvores, imaginou-se entre os animais, livrando-se de insetos, tendo de improvisar uma cabana com pedaços de pau e cipós e percebeu que poucas vezes na vida estivera tão feliz. Na primeira noite dormiu na relva, sob a música suave dos mosquitos que tentaram dilacerar sua carne. Não importava, estava feliz. Com o passar dos dias, construiu uma cabana improvisada para se proteger das chuvas fortes que viriam e de possíveis animais selvagens. Descobriu um pequeno córrego, onde a água era límpida e cristalina. Se alimentava de frutas e pequenos animais, fazia fogo friccionando varetas, como aprendera quando criança. Decidiu não contar o tempo e o tempo se passou sem que se desse conta. Decidiu não se preocupar com a aparência (por que o faria?) e passou a andar nu cada vez mais e a não cortar cabelo, barba ou bigode. De vez em quando cantava ou assobiava uma velha canção, dos tempos em que ainda vivia no mundo (no inferno?) apenas para passar o tempo, embora tivesse perdido a noção do que era o tempo. Os dias se passavam, as luas traziam as noites, ele dormia, acostumado com os mosquitos, acordava com o sol no dia seguinte e recomeçava sua vida baseada em se alimentar e se proteger das chuvas. Estava no paraíso. Ou, assim pensava. E o tempo, sempre implacável, continuava a trabalhar sob a ilha, sob seu corpo e sua alma, e subitamente, como uma pedra que cai sobre a cabeça, ele percebeu que não estava totalmente feliz, não estava totalmente satisfeito com a vida que levava e que ali talvez não fosse o paraíso. Faltava algo. Inquietou-se durante dias para descobrir o que poderia lhe faltar, posto que abdicara do mundo e das felicidades ilusórias. Um dia, percebeu o que lhe faltava. Faltava a dor. Não se vive sem dor, não se pode ser feliz sem se sentir dor. A vida sem dor é ilusória, descobriu ele, entre o alívio e o desespero. Começou a se impingir dor física. Com uma pedra, cortou-se na barriga. Fez talhos nas pernas, deixou sangrar as feridas e espalhou areia nelas. Sentiu dor, mas não como queria. Não como era para se sentir dor. Tomou uma decisão. Com a faca de sílex que improvisou, arrancou de si uma costela. Achou que fosse morrer vendo o mar de sangue na areia da praia e os ossos fraturados. Não importava. Talvez fosse melhor morrer. Dormiu então, aquele sonho entre a febre e o devaneio. Dormiu acreditando que não mais acordaria. Mas, despertou, não soube quanto tempo depois, e ao acordar, viu diante de si, uma mulher, sentada com as mãos abraçando os joelhos, observando-o atentamente. Não demorou a perceber que ela nascera de sua costela e que em sua pele uma imensa cicatriz se fazia ver. A mulher sorriu. Ele então percebeu que a amaria. E que, por esta razão, começaria a sofrer. Sentiria dor. Seria arrancado do paraíso. Para sempre. E sorriu, tremendo de felicidade.