13 setembro 2010

As nuvens


Cefas Carvalho

Amava a esposa. Sabia de suas qualidades e as reconhecia sendo, igualmente, um bom marido. Contudo, aborrecia-se com a falta de memória de Tânia.
Nada grave. Tânia era profissional competente – publicitária de primeiro escalão – com vida social e cultural intensas. Era bela e atraente, dona de olhinhos miúdos que pareciam mudar de cor de acordo com seus humores. Mas, para Augusto, professor universitário dos mais conceituados na cidade, a falta de memória da mulher amada lhe doía como uma ferida não cicatrizada.
Claro que ele, com a sensatez que lhe era peculiar, raciocinava que ninguém tem a obrigação de se lembrar de tudo. Se ele sentia prazer em recordar datas, citações, nomes, números (era professor de filosofia, que fique explicado), não poderia exigir o mesmo da esposa.
Porém, mais que a falta de memória, Augusto reprova em Tânia o desrespeito para com a memória.
Posso explicar: em uma reunião social, regada a queijos e bons vinhos, como costumavam, fazer, uma amiga comentava com Tânia sobre um amigo em comum que fora morar em Portugal. A amiga pergunta se Tânia recorda que estudaram juntos os três e que foram juntos a um congresso em Manaus. Tânia responde que sim, se lembra, e registra que naquele congresso um outro amigo em comum passara mal e tivera que ser internado. Imediatamente a amiga responde que não, Tânia está confundindo. O amigo internado o fora em Salvador, em outro congresso anos depois. Tânia insiste. Foi em Salvador, eu me lembro. A amiga pacientemente descreve o hospital e o bairro onde está localizado, e registra que após visitarem o amigo foram para o Pelourinho, provando que, obviamente, ela está com a razão. Tânia ri inocentemente, toma mais um gole de vinho e comenta: Ah, foi em Salvador. Mas, o que se importa? Poderia ter sido em Manaus ou em qualquer outro lugar...
Augusto já fora vitimado pela falta de memória (corrijo-me: pelo desrespeito à memória) da esposa. Em mais de uma ocasião, Tânia trocara datas e locais onde passaram férias. Em certa feita, tendo bebido mais do que devia em uma festa, fincou pé que um determinado momento que haviam vivido em Pipa (e ele tinha certeza disso) na verdade acontecera em Porto de Galinhos. Para não constranger a mulher, Augusto assumiu o engano. Mas – rigoroso que era não apenas com seus conhecimentos, mas, com sua memória – engoliu com dificuldade o fato.
Para ele, a memória (ou melhor, os fatos evocados por esta memória) era como equações matemáticas. Mais que isso: era granito, mármore.
Para ela, os fatos (sinônimo de memória neste texto) eram como nuvens. A cada momento mudavam de posição e formato.
(Abro um parêntese para registrar o desespero que se apossava de Augusto ao ver, com o passar dos anos, as histórias de Tânia se modificarem, tal como acontece naquela brincadeira de infância conhecida como telefone sem-fio. Quando se conheceram, Tânia falava em um ex-namorado com quem tivera um romance durante dois anos e com quem viajara para Porto Seguro. Anos depois, vindo o nome do ex-namorado à tona por uma razão corriqueira qualquer, o namoro com o rapaz tinha durado um ano, segundo Tânia, e depois ela recordou que viajara para Porto Seguro com uma amiga e o namorado desta.
Outro homem poderia se dar por feliz pelo fato da esposa lembrar com tão pouca nitidez dos romances do passado. Mas, não Augusto. Aquilo lhe aborrecia por 1) O amor aos fatos e às datas ser superior ao ciúme, principalmente o retroativo, que ele achava absurdo e infantil. 2) Porque sabia que um dia poderia chegar a vez dele! Afinal, nada garantia que o casamento deles seria eterno. Era tão comum casais se separarem. Contudo, ele próprio sabia que jamais esqueceria os momentos que viveu com Tânia. E a experiência lhe mostrara que, tão logo se recuperasse da dor inicial inerente à qualquer separação, Tânia transformaria toda a bagagem de coisas que viveram em uma massa disforme de lembranças)...
Augusto começou, aos poucos, claro, a perceber que as sensações geradas pela falta de memória/desrespeito à memória da esposa lhe estavam fazendo mal. Não conseguia falar sobre o assunto. Também se espantava com o fato de Tânia não perceber o quanto aquilo o desagradava. Mas, não haveria como perceber nada, afinal, elegantemente Augusto não demonstrava seu descontentamento.
Em uma noite particularmente quente, quando os filhos pré-adolescentes haviam saído, decidiram sentar à varanda com um balde de cervejas e alguns petiscos. Tânia afagou a cabeça do marido e perguntou o que aquilo recordava. Ele não soube dizer e teve medo da resposta da mulher. Tânia então recordou que ele a pedira em noivado na casa dela, justamente com um cenário igual aquele: um balde de cervejas, azeitonas e queijos. Augusto brincou: Você nem lembra a data. Tânia imediatamente disse a data exata do pedido de noivado. Descreveu a roupa que usava na ocasião: um vestido florido que depois do casamento havia virado pano de chão.
Augusto bebeu - no gargalo - um longo gole da cerveja e sorriu para a esposa, achando-a bela como nunca. Em seguida, arrastou-se para o som para colocar um CD de Bille Holiday. Como havia feito naquela noite – do pedido de noivado – catorze anos antes.

Um comentário:

Vanessa Souza disse...

Falta de memória pode ser uma dádiva.