13 fevereiro 2012

Um banquinho, um violão e uma letra errada

Cefas Carvalho

Alguns amigos meus adoram música ao vivo em barzinhos. Mapeiam os lugares onde os músicos se apresentam e conhecem alguns deles pelo nome e o repetório. Outros amigos, fogem destes barzinhos e tem verdadeiro horror a música ao vivo e se vêem em um bar onde já estão alguém afinando um violão, pagam a conta às pressas e vão embora correndo. Sou da turma do meio termo. Não amo música ao vivo em barzinhos, mas também não fujo deles como o diabo da cruz.
Na verdade, meu problema com cantores de barzinho é a chacina que alguns deles fazem com as letras das músicas. Sim, é besteira minha exigir que todos tenham as letras 100% decoradas, principalmente se os clientes – eu incluso – estão lá no bar para namorar, beber e papear, não para ouvir a música com atenção de maestro. Se um deles, por exemplo, errar o tom ou desafinar sutilmente jamais perceberei. Mas, dilacerar letras conhecidas é algo que me irrita, confesso.
Após anos e anos de peregrinação a barzinhos com música ao vivo, sei de cor não apenas o inexorável repertório de 90% deles (“Canteiros”, “Sampa”, “Sozinho”, “Nem um dia”, aquela música chata que começa com "Um dia frio... um bom lugar pra ler um livro...") como os artistas cujas letras são mais trucidadas: Zeca Baleiro, Renato Russo, e aqueles que gostam de jogos de palavras como Djavan, Humberto Gessinger e Caetano Veloso.
Recordo, com alguma dor, de erros brutais que cantores de barzinhos cometerem nas letras. Lembro de um que, empolgado com a paixão de “Como eu quero”, do Kid Abelha, cantou: “Jogos de guitarrra não vão me conquistar” (Seria mais fácil conquistar Paulinha Toller com solos de guitarra...). Outra vez, atacando com Legião Urbana, o cantor reformulou “Tempo perdido”: “Fomos são jovens” (E Renato Russo, iludido, escreveu a música no presente: “Somos tão jovens”).
Em “Regra três”, de Toquinho, o autor disserta sobre os vacilos do protagonista da música e explica porque a amada vai embora: “Porque o perdão também cansa de perdoar”. Mas, certa vez o cantor detonou: “Porque o perdão não se cansa de perdoar”. Ou seja, para aquele cantor, a moça sequer foi embora de casa...
Outra recordação de cantor de barzinho, esse mandando ver na sensual “Girassol”: “Ai, teu jeito em meu lençol” (Ter uma mulher jeitosa no lençol da gente não é uma má idéia, mas Alceu Valença quer dizer “Teu cheiro em meu lençol”.)
Recentemente, desbravando bares em Parnamirim, eu e os amigos demos de cara com um cantor não com violão, mas com teclado com bateria eletrônica... Como o cidadão estava interpretando clássicos de Zé Ramalho, superamos o pavor inicial e ficamos. Contudo, na hora de “Kriptônia”, o artista aloprou: “Não admiro que me fale assim”... Enquanto ainda respirávamos depois dessa, ele continuou: “Sou primo gênio do seu avô, primeiro curandeiro”. O primeiro vacilo (trocar admito por admiro), a duras penas, passaria, mas cantar “primo gênio” em vez de primogênito é dose!...
Mas nada se compara a algo que ouvi nos idos anos 90, em um barzinho ali na Ponta do Morcego. Uma bela morena cantava clássicos de Ednardo e Geraldo Azevedo, até que resolveu mandar “Mulher nova, bonita e carinhosa”, de Zé Ramalho, imortalizada por Amelinha, atraindo a atenção dos marmanjos pela beleza, suavidade e talento. Pelo menos até o momento em que, empolgada, cantou: “Quem não ama o sorriso feminino, desconhece a poesia dos Cervantes”. Ou seja, transformou o escritor espanhol Miguel de Cervantes, criador do ilustre fidalgo Don Quixote de La Mancha, em um povo, uma tribo, saba-se lá, talvez em moradores de mais uma região espanhola, lá entre a Catalunha e Valencia. Depois deste estupro musical, fomos recuando de fininho rumo ao balcão do barzinho. E fizemos um brinde aos Cervantes, seja lá quem eles forem...